Prólogo
Entrei pela primeira vez na Capela do Senhor do Bonfim pouco depois das 13 horas do dia 12 de maio de 1998. Embora nascido em lar católico, tendo mais tarde participado de diversas atividades comunitárias e sendo vicentino da Conferencia Nossa Senhora Aparecida, junto com meus saudosos e queridos Máximo de Tate e Sete Belo, confesso que nunca me agradei com as imagens de santos. Nunca vi muito sentido nisso, preferindo conhecer a biografia do santo a adorar sua imagem, mas reconheço que sou, quando muito,dono da minha própria verdade e que cada pessoa tem o direito de professor sua fé da maneira que melhor entender, observado o limite do respeito aos direitos do próximo.
A minha forma pessoal de expressar fé em Deus e em Jesus Cristo não contempla a adoração de imagens. O que é direito e problema absolutamente meu.
Por isso, ao entrar na capelinha de João de Camargo naquele início de tarde, confesso que fiquei um tanto quanto decepcionado quando vi a profusão de imagens que povoa o local. Fiquei ainda mais surpreso quando percebi que, ao lado das imagens dos santos e santos da Igreja Católica, conviviam pacífica e harmoniosamente outras imagens e representações diversas, de padres falecidos, políticos e outros personagens de nossa história.
Ainda mais apalermado do que habitualmente sou, só consegui me perguntar: como é que logo ele, tão desapegado aos valores materiais, pode se aferrar de forma tão radical ao culto de imagens ? Porque a transmissão de sua mensagem de paz requer o uso de tantos quadros e esculturas ?
No entanto, a contemplação daquele cenário tão singelo, aquela paz poderosa, aquela serenidade tão impecável foram me abrandando e uma ampla compreensão foi gradativamente tomando conta de meu ser. Não a compressão que eu anteriormente buscava, com respostas claras para minhas perguntas lógicas; mas sim o entendimento completo do lugar em que eu me encontrava.
Havia, sim, uma energia poderosa ali. Alguma coisa de muito importante aconteceu naquele local, só que ninguém além de Nhô João - e, talvez, nem ele mesmo - pode dizer o que foi. E aquelas imagens não eram para serem entendidas em seu sentido literal, cru, mas sim em seu sentido simbólico. As coisas não são coisas em si, mas sim aquilo que representam. No caso, representam o universo e o imaginário de um homem simples que foi escolhido para receber uma espécie de iluminação. Vencido, entreguei-me á contemplação de cada detalhe e fui aprendendo que a fé não pode ser explicada, mas somente sentida, e que também é necessário ter humildade para ser aceito nos diversos ambientes. Eu estava na casa de Nhô João de Camargo, e aquilo era um pouco ele, tinha a mão dele, o jeito dele de fazer as coisas, o modo dele de arrumar as coisas. O vislumbre do Eterno que foi dado a Nhô João de Camargo estava expressa ali, em cada canto da capelinha. Quando percebi isso, chorei.
Não consegui pensar logicamente em mais nada. Ali a lógica cede vez á mágica. Aquela pequena ilha de placidez e tranqüilidade bem no meio da agitação e do trânsito intenso da Avenida Barão de Tatuí não é lugar para pensar na dureza da vida que se leva e nem de pensar na competição e na luta do cotidiano, onde a gente faz bem que pode e, tantas vezes, o mal que não quer. Ali é lugar para parar, pensar, refletir e tentar entender este planeta como um barco de luz azul flutuando no universo, levando em seu bojo uma humanidade que parece ter perdido o sentido da bondade e da fraternidade. Essa talvez seja a essência da mensagem de Nhô João de Camargo: lembrar - nos a todos que somos todos irmãos em humanidade independentemente de religião, raça ou classe social.
Eu tinha este trabalho mais ou menos desenhado na cabeça, mas a visita á capelinha desarticou meus planos. Desisti de pensar e entender, e dediquei - me a apenas sentir. Tentei escrever com o coração este trabalho sobre Nhô João de Camargo. Não sei sei minhas limitações permitiram que fizesse. mas fico satisfeito de pelo menos ter tentado.
Onde situar Nhô João ?
Como todos os homens, Nhô João nasceu, viveu e morreu, cumprindo o ciclo comum. Teve uma trajetória, fez suas opções, em determinado momento de sua vida elegeu suas convicções e passou a viver de acordo com elas. Como pode acontecer com todos os homens , teve seus momentos de dúvidas, desesperos, enganos, erros e desacertos, até encontrar um caminho que considerou correto e trilhou por ele, sem medo e sem duvidar da força da fé.
Contrariou padrões estabelecidos, penou por isso, mas ninguém pode duvidar da autenticidade poderosa de sua fé e da encantadora singeleza de sua mensagem universal. Sem discriminar ninguém, a todos atendendo com bondade, Nhô João vivenciou um mundo plural, que tem lugar para todos os homens viverem em união; que tem lugar para todas as crenças; que tem lugar para todas as correntes de opinião, mesmo aquelas professadas pelos que a combateram. Tratou seus detratores com doçura, não se sabendo de mal que tenha tido origem em seu coração. Sua mensagem pode ser entendida em resumo como a prática da caridade e o exercício da fé em Deus. Este trabalho não pretende ser um ensaio filosófico, mas é impossível deixar de fazer algumas relações e associações ao analisarmos alguns aspectos da existência de João de Camargo Barros.
Segundo Jostein Gaarder, autor de "O Mundo de Sofia", o existencialismo - corrente de pensamento que entende ser o homem na sua existência concreta o objeto próprio da reflexão filosófica - foi iniciado pelo filósofo dinamarquês Sören Aabye Kierkegaard ( 1813/1855 ). Uma vez condenado à liberdade, surge o homem como arquiteto de seu destino, embora submetido a limitações concretas. Existencialista cristã, para Kierkegaard a questão da fé é uma das mais importantes da existência humana, notadamente a fé religiosa. Em sua opinião, não se pode nem se deve entender Deus objetivamente, pois a questão da fé em Deus e na ressurreição de Jesus Cristo é eminentemente subjetivo. Ou seja, Gaarder ensina que, na contramão de outras correntes de opinião que tentaram provar a existência de Deus pela razão, Kierkegaard acha que se queremos entender Deus objetivamente é porque não cremos, e só cremos porque não podemos entender objetivamente. Ou seja, lançar-se em busca dessa verdade, a crença na existência de Deus - ou, no caso dos cristãos, acreditar que efetivamente Jesus Cristo ressuscitou no Domingo de Páscoa -, é uma questão crucial e estritamente pessoal com a qual todo indivíduo vai ter que se deparar em algum momento de sua vida. É esse crer ou não crer que faz a diferença para Kierkegaard, para quem, se cremos, não temos alternativa senão irmos fundo nessa fé religiosa, vivenciando-a às últimas conseqüências.
Kierkegaard, a partir de uma perspectiva cristã, também dividiu a existência humana em três estágios possíveis: estético, ético e religioso. Ele utiliza o termo estágios por comportar a possibilidade de transmigração de um para outro em determinados momentos.
No estágio estético, o indivíduo vive em função de seus prazeres, do que é sensorialmente agradável e propicia algum tipo de prazer. Ao mesmo tempo em que extrai prazer dessa vivência intensamente lúdica, Kierkegaard acredita que o indivíduo vira uma espécie de escravo de seus próprios desejos. No limiar da passagem para o estágio ético, o ser sente a necessidade de adotar decisões mais consistentes na esfera pessoal, cientificando-se da gravidade da vida. É o momento em que as decisões são tomadas não para a satisfação do prazer física ou não, mas sim obedecendo a parâmetros éticos rigorosos. Kierkegaard afirma ser possível um retorno do indivíduo ao estágio estético no final da existência, oportunidade em que - cansado de levar a vida a sério demais e vislumbrado o fim próximo - retorna a priorizar os aspectos lúdicos da vida. Porém, acredita Kierkegaard, pode acontecer, para pouquíssimas pessoas, uma sublimação, com o salto de qualidade do estágio ético para o religioso, que o filósofo interpreta como a vivência integral do cristianismo em todos os seus aspectos.
É impossível deixar de identificar esses três estágios na trajetória humana de Nhô João. As vivências dessas três fases estão perfeitamente definidas, bem como a firmeza da decisão da passagem para o estágio religioso, com todas suas conseqüências.Ainda há um outro aspecto de Kierkegaard que pode ser utilizado neste raciocínio. O filósofo dinamarquês não considerou relevante a busca por uma única verdade. Para ele, mais importante do que saber se existe uma verdade, é saber se podemos abraçar essa verdade. Dessa forma, mais importante do que saber se o cristianismo é verdadeiro, é saber se o cristianismo é verdadeiro para o indivíduo - na visão de Kierkegaard.
Assim sendo, considerando que a existência é curta demais para ficarmos reduzidos à contemplação, Kierkegaard entende fundamental a ação humana: ao fazemos opções no campo religioso, devemos ir às últimas conseqüências.
A conferir no prefácio do texto "O Desespero Humano ( doença até a morte )", de Kierkegaard: "Ousarmos sermos nós próprios, ousar-se ser um indivíduo, não um qualquer, mas este que somos, só face a Deus, isolado na imensidade de seu esforço e da sua responsabilidade: eis o heroísmo cristão, e confesse-se a sua provável raridade; mas haverá heroísmo no iludirmo-nos pelo refúgio na pura humanidade, ou em brincar a ver quem mais se extasia perante a história da humanidade? Todo o conhecimento cristão, por estrita que seja de resto sua forma, é inquietação e deve sê-lo, mas essa mesma inquietação edifica. A inquietação é o verdadeiro comportamento para com a vida, para com nossa realidade pessoal e, conseqüentemente, ela representa, para o cristão, a seriedade por excelência".
Em suma, para Kierkegaard prevalece a verdade individual sobre a verdade única, valendo a concepção de mundo que cada pessoa tem, advinda de seu repertório formativo e informativo. Em João de Camargo, esses elementos são rigorosamente nítidos, mais especificamente na capelinha, que reproduz materialmente a visão do Eterno que o ex-escravo teve na Cruz do Alfredinho. Na capelinha está presente a interpretação daquilo que Nhô João vivenciou no plano espiritual: é a leitura que fez, conforme sua bagagem repleta de simplicidade, singeleza e espiritualidade. São as verdades plurais e cristãs de João de Camargo.